o pombo
a semana passada um pombo apareceu num buraco, que é um jardim aberto a dois níveis abaixo do piso 0. a esse nível nunca tinham aparecido pombos, só melros e pardais. o pombo estava ferido. telefonaram-me do jardim para o interior do edifício para que eu fosse até lá. o pombo estava ferido. quando lá cheguei estava o pombo quieto, no meio do vazio a olhar para a pessoa que me telefonou. quando me viu baixar em sua direcção esvoaçou e, ao deslocar-se, deixou no chão um coágulo. apanhei-o um pouco mais à frente. tinha o peito ferido. era um pombo correio. primeiro havia que perceber o tipo de ferimento. questionei outra pessoa, que eu sabia conhecer ferimentos de bala em pombos. achou estranho o ferimento para ser chumbo e a força do pombo. especulamos sobre um eventual rasgo por uma dessas agulhas protectoras de estátuas e janelas. arranjámos uma caixa de resmas de papel, forrámo-la e, tendo em conta que ele não queria voar, trouxemos a caixa com o pombo lá dentro para o interior. ele manteve-se quieto. fui à net, localizei um site de columbofilia português e telefonei. disseram para aguentar o pombo com água - isso já estava tratado, tentar dar-lhe algo para comer dentro de parâmetros que não importa aqui, e esperar pelo dia seguinte, caso ele conseguisse voar, deixá-lo ir. perguntei se era possível identificar o dono, disseram que sim, que ligasse no dia seguinte para a associação xpto que pela anilha iam lá... perguntaram pelo número da anilha, se era z ou y, disse-lhe que era x. tratava-se de um pombo de rara capacidade para vôo, pois já seria velho nos padrões habituais, e, por isto, valioso, que o dono de certeza o desejaria resgatar. insistiram com a busca pelo dono, despedi-me e desliguei. combinei com o meu pai em levar o pombo para casa. entretanto uma vegan, presidente de uma organização de recolha de fundos para animais, aproximou-se, já tinha ligado para a veterinária amiga que se dispunha a arranjar um esquema para ver e tratar do pombo. a vet avisou de que era regra os columbófilos abaterem pombos feridos e incapazes de retomar os vôos a que estão destinados. entretanto o olho direito do pombo fechava-se. ele tinha bebericado a água. mantinha-se de pé. forte. abriu o bico. uma e outra vez. parecia sofrer - não sei. o esquema da vet complicou-se quando entraram burocracias no caminho, pelo que o pombo teria que ver adiada a hora em que poderia ser visto por ela, na casa dela. a vegan levaria o pombo no autocarro e duas horas mais tarde entregaria a ave à vet. ficou decidido. despedi-me do pombo. entretanto, algumas pessoas, que não reconhecem nos bichos uma capacidade fenomenal de sofrimento, de vida e de morte que a maioria dos humanos jamais saberá tomar em consciência, já me tinha irritado com piadas sobre o que estás a fazer ou o que importa esse bicho... escrevia, despedi-me do bicho com leve passar de dedo nas penas. fui embora. dois dias depois a vegan veio ter comigo e disse-me que estava tudo bem. que ele já comia sozinho. que o ferimento era no tórax, talvez das tais agulhas protectoras. que já comia sozinho. enfim, um sobrevivente. ele foi à vida dele. eu fui à minha. comi um bife suculento, uma salada com mosquito e uma imperial fresca em sua honra.
não gosto de escrever estórias reais, mas às vezes é preciso.
não gosto de escrever estórias reais, mas às vezes é preciso.
1 comentário:
assim apaixono-me!
tão bonito, Zé. e percebi tudinho!
Enviar um comentário